A versão real sobre a situação das meninas do Sistema Socioeducativo e a Resolução do CONANDA aprovada em dezembro de 2020

Na última quinta-feira, 17 de dezembro de 2020, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, órgão deliberativo e controlador das políticas de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil, instituído para garantir a efetividade do princípio da democracia participativa, na forma estabelecida pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, da Lei nº 8.069 de 1990 e Lei nº 8.242 de 1991, aprovou em Assembleia uma Resolução, com base em minuta elaborada pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (Lei Federal 12.847 de 2013), que define diretrizes sobre o Sistema Socioeducativo e a situação das meninas que estão privadas de liberdade. Assim define a ementa da Resolução: “Estabelece diretrizes para o atendimento socioeducativo às adolescentes privadas de liberdade no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)”.

Como se trata de tema relacionado a diversidade, gênero, etnia e liberdade religiosa, exatamente como está previsto no artigo 35, VIII, da Lei nº 12.594/2012, que trata do Política e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, vem sendo alvo de interpretações e discursos de ódio, homofóbicos com o propósito de fragilizar a luta de décadas da sociedade civil que ocupa esses espaços de participação popular e contribui para regulamentar as políticas públicas voltadas a infância e adolescência no País.

Não é sem razão que ao fazer depoimentos em mídias sociais as autoridades de alto escalão do Estado brasileiro, ao invés de trazer esclarecimentos para a população, o faz sob tom de balbúrdia e total desinformação. Essa postura causa mais dificuldade para que se possa trabalhar na perspectiva da reinserção dessa população juvenil que deve ser acolhida pela comunidade, família e Estado, ao cumprirem a medida privativa de liberdade. Ainda não são garantidos plenamente os direitos humanos desses/as adolescentes, como já se veiculou por reincidedentes violações denunciadas, inclusive nos órgãos internacionais de Direitos Humanos. O que se vê é um desserviço público, por parte de pessoas que estão recebendo recursos do Poder Público para prestar um serviço qualificado e competente nas suas respectivas funções públicas.

Com efeito, os dispositivos citados e midiaticamente veiculados, não se aplicam ou condizem com a forma e realidade do texto descrito na Resolução, até porque existem mecanismos legais e previsto na Lei do SINASE, Constituição Federal, Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente, que devem ser interpretados conjuntamente e no que couber. As diretrizes são de natureza complementar, norma de natureza orientadora e na lacuna da lei, autoaplicável, para se fazer cumprir o princípio da prioridade absoluta e a doutrina da proteção integral.

Assim, é de bom alvitre salientar que a Lei nº 12.594/2012 (Lei do SINASE) define nos artigos 67, 68, 69 e 70, quais os critérios legais para disciplinar sobre as visitas intimas e demais direitos assegurados às meninas. Esses direitos não podem ser pormenorizados e minimizados em detrimento do que já está assegurado para os adolescentes, meninos, que também tem os mesmos direitos do Sistema Socioeducativo nas unidades de internação do Brasil.

É importante elucidar que ao disciplinar sobre os critérios, a lei se refere aos adolescentes, excluindo o gênero feminino o que muitas vezes é objeto de interpretação equivocada ou maliciosa para violar os direitos das meninas. Fatalmente a Resolução explicita e fortalece o que a lei deixou de fazer, embora os direitos assegurados sejam para todos/as que estão no Sistema e privados de liberdade.

Na verdade, a intenção das divulgações deturpadas e caluniosas, é desqualificar o trabalho realizado por conselheiras/os do CONANDA, e ainda, a finalidade de confundir a sociedade e não permitir que sejam identificadas as inúmeras violências sofridas pelas adolescentes, e que foram denunciadas e apuradas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura, de acordo com Relatório decorrente de visitas realizadas em algumas unidades do Sistema Socioeducativo pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate a Tortura, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e por representantes do CONANDA, publicado em março de 2019.

O CONANDA cumpriu de acordo com suas atribuições o que está definido pela Constituição Federal de 1988. Nada foi aprovado sem a obediência a norma constitucional e infraconstitucional. E ainda, ao que estabelece a absoluta prioridade dos direitos de crianças e adolescentes, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069 de 1990, e o que prevê a Lei nº 12.594/2012 que trata especificamente das medidas socioeducativas e sua execução, inclusive a que é relativa as que são privativas de liberdade.

Certamente que aqueles/as que fazem declarações e divulgações equivocadas, irresponsáveis e inconsequentes não interessam ou não são detentores de conhecimento referente ao ECA e ao SINASE. A nós não cabe julga-los, mas sim reafirmar que o CONANDA aprovou a Resolução que cria critérios e traça diretrizes para impedir que se perpetuem tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, como casos de violência sexual e racismo cometidos, muitas vezes, por agentes do socioeducativos, não fornecimento de absorventes, suspensão de visitas como sanção, dentre outras situações registradas nos relatórios de visitas a unidades socioeducativas femininas, de acordo com denúncias apuradas a partir de relatório expedido desde 2015, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Reafirmando esse compromisso com o seu papel de órgão formulador de políticas públicas para o fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentes – SGD é importante explicitar que a Resolução do CONANDA traz soluções para recomendar aos Estados que apontem e definam, de acordo com as diretrizes já estabelecidas na legislação, fluxos e formas de atendimento às adolescentes privadas de liberdade no Sistema Socioeducativo (SINASE), instituído pela Lei nº 12.594 de 2012.

A Resolução não é uma ferramenta para violar direitos humanos de crianças e adolescentes. Pelo contrário! Tem a finalidade de garantir direitos. Prova disso é o fato de fixar diretrizes para o atendimento socioeducativo às adolescentes privadas de liberdade no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo.

O que se busca com a nova regulamentação e parâmetros de orientação é sobretudo estancar as violações sofridas pelas meninas nas unidades socioeducativas. Esses são os objetivos da Resolução em seus 57 artigos. Entre eles podem se destacar: a necessidade de fornecimento de absorventes, acompanhamento por agentes socioeducativas mulheres de modo a mitigar riscos de violência sexual, vedação a videomonitoramento em locais em que haja troca de vestimenta, vedação à revista corporal com desnudamento, garantia de acesso à educação e profissionalização, medidas de promoção à saúde física e mental, inclusive na prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), previsão especial a adolescentes gestantes e mães, capacitação de funcionárias, medidas de enfrentamento ao racismo e discriminação de gênero. Também assegura às meninas garantias já previstas em lei, como a própria visita íntima e a possibilidade de exercício da sexualidade e do afeto, respeitados os critérios e regras legais, inclusive cabendo a unidade garantir que sejam respeitados os direitos já assegurados com essas cautelas devidas.

Por fim, deve se afirmar que é exatamente pelo respeito a integridade física e mental da adolescente que a visita íntima só é permitida para maiores de 16 anos nos termos da Lei do SINASE. Nesse sentido é taxativo o artigo 41 da Resolução do CONANDA, estabelece que “deverá ser garantido o direito à visita íntima para as adolescentes, independentemente de sua orientação sexual ou identidade e expressão de gênero, nos termos do artigo 68, da Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012”. A Lei do SINASE, no artigo 68, define “É assegurado ao adolescente casado ou que viva, comprovadamente, em união estável o direito à visita íntima”. Assim, o direito à visita íntima somente é permitido em caso de casamento ou união estável.

Já o Código Civil Brasileiro, dispõe no artigo 1.517 que “O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil”, sendo que eventual discordância deve ser suprimida judicialmente, conforme artigo 1.631 do mesmo Código. Portanto, os atores do SGD e do Sistema de Justiça que devem estar atentos à legislação já em vigor e avaliar de acordo com a nova Resolução como podem ser aplicados os seus dispositivos, cuja finalidade é contribuir para a efetiva execução da medida socioeducativa, garantindo-se respeito a diversidade, também no Sistema Nacional Socioeducativo e nas unidades de internação do País.

Deve se considerar, ainda, que cada adolescente privado de liberdade possui um Plano Individual de Atendimento (PIA) e acompanhamento técnico que deve ser um dos parâmetros para se executar qualquer procedimento adotado. As divulgações falaciosas dos que pensam e agem de forma irresponsável e tentam desqualificar um trabalho sério dos/as conselheiros/as é imperdoável e certamente será avaliado pelos que podem compreender a importância de conhecer a realidade de adolescentes que estão no Sistema Socioeducativo.

Finalmente há de se esgotar que os pontos atacados pelas pessoas que disseminam discurso de ódio esta arraigado pelo preconceito e malversação do serviço público, vez que atacam exatamente pontos que se referem a diversidade, a exemplo do artigo 23 da Resolução, que trata da possibilidade de permanência no mesmo alojamento, bem como exercício da sexualidade, da afetividade e da convivência. O fato é que esses direitos são exercidos de maneira diversa e para além da conjunção carnal. Significa dizer que: adolescentes vivenciam a sexualidade e o afeto, mesmo antes do ato sexual e tal momento de descoberta e experimentação é inerente a essa fase da vida. Já no caso específico da conjunção carnal, deve se respeitar o que estabelece o artigo 217-A do Código Penal Brasileiro. Certamente não será permitida, institucionalmente no contexto das unidades de cumprimento de medida socioeducativa, para aquelas com idade inferior a 14 anos de idade.

Espera-se que essas informações contextualizadas de acordo com o real objetivo da Resolução e a legislação do SINASE, possam ter adesão de outros segmentos e que contribuam para o valor humano, garantindo que essa situação e condução da verdade, inelutavelmente, possa ser mote da consciência ética e o respeito aos valores inerentes ao Estado Democrático de Direito Humanos de Crianças e Adolescentes.

Glicia Salmeron

Advogada

Conselheira do CFOA e do CONANDA