A jurisprudência do “mero aborrecimento” está sendo utilizada por alguns magistrados brasileiros sob a alegação de que uma situação lesiva, por ser comum a vida em sociedade, não enseja qualquer reparação ao jurisdicionado. Para Ordem dos Advogados do Brasil, em Sergipe, esse novo entendimento tem causado prejuízos ao cidadão consumidor, inibindo e desestimulado o acesso à justiça.
Nesta quarta-feira, 25, a OAB/SE retomou o debate sobre a temática e promoveu, através da Comissão de Juizados Especiais, a palestra “Transformando a jurisprudência do mero aborrecimento com a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor”, proferida pelo advogado e autor da teoria, Marcos Dessaune.
Ao realizar a abertura do evento, o presidente em exercício da seccional, Inácio Krauss, reafirmou a postura da entidade em relação ao novo entendimento adotado pelos tribunais. “A OAB/SE é contrária a jurisprudência do mero aborrecimento, porque entende que ela endossa o desrespeito aos direitos básicos do consumidor e impõe barreiras ao acesso da população à justiça. Acreditamos que o ato ilícito precisa ser punido como tal e não julgado como uma simples contrariedade”, defendeu Krauss.
Segundo o presidente da Comissão de Juizados Especiais, Lucas Oliveira, o objetivo do evento foi conscientizar a sociedade sobre os equívocos presentes neste novo posicionamento dos magistrados. “Os cidadãos precisam saber que o mero aborrecimento é um retrocesso social. Nosso propósito é apresentar maneiras de lutar contra ele, mostrando que o consumidor é sim lesado e por este motivo merece ser indenizado”.
Presidente da Comissão de Direitos do Consumidor, Eduardo Araújo, frisou que é necessário questionar a aplicação do mero aborrecimento nos tribunais brasileiros. “Precisamos combater essa tese, porque os atos ilícitos devem, necessariamente, ser punidos. O cidadão consumidor não pode ter seu direito tolhido”.
Teoria do Desvio Produtivo
Iniciando sua palestra, o advogado Marcos Dessaune, autor da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, explicou que, nos últimos anos, os tribunais brasileiros desenvolveram a jurisprudência do “mero aborrecimento”, pela qual entendem que situações nas quais os cidadãos desperdiçam tempo de vida e se desviam de atividades, trabalho, estudo lazer e etc não são intensas e duradouras o suficiente para caracterizar o dano moral indenizável, pois representam apenas dissabores normais na vida do consumidor.
Na ótica de Dessaune, a tese do “mero aborrecimento” está equivocada, fato que o levou a criar uma teoria para contrapor essa jurisprudência e buscar a reparação do dano que resulta na injusta perda de tempo, com dificuldades, demora no atendimento e outras práticas comerciais abusivas de fornecedores de produtos e serviços.
“O mero aborrecimento é um pequeno sentimento negativo, só que nessas situações de desvio produtivo, não há sentimento envolvido. O bem jurídico lesado não é a integridade psicológica e física, mas sim o tempo e as atividades existenciais do consumidor. A Teoria do Desvio Produtivo considera que ainda o tempo é um bem finito, inacumulável e irrecuperável. Daí o prejuízo que decorre para o consumidor”, explicou.
Por fim, o advogado enfatizou que essa perda de tempo e o desvio das atividades rotineiras geram o que se chama de dano extrapatrimonial de natureza existencial indenizável in re ipsa, ou seja, sem necessidade de comprovação do prejuízo. “Sendo o tempo-duração um bem jurídico e sendo ele o bem lesado nas situações de desvio produtivo, o consumidor tem que ser indenizado”, concluiu Dessaune.
Judiciário
Durante a palestra, o juiz da 7ª Vara Cível, Aldo Mello, citou situações do cotidiano nas quais o mero aborrecimento é utilizado. “Se vou com minha esposa a um restaurante que adoramos e o local está lotado, não há ato ilegal e isso é um mero aborrecimento, ou seja, um infortúnio que o cidadão é obrigado a suportar porque ele vive em sociedade. Não posso entrar com uma ação por danos morais contra o estabelecimento por causa disso”, esclareceu.
Para o juiz, o problema na jurisprudência reside no fato de que estão aplicando de forma equivocada o “mero aborrecimento “, em situações de evidente infração à legislação de proteção ao consumidor. “Se vou ao mesmo restaurante, peço uma macarronada e aparece uma barata no prato, isso não é mero aborrecimento. O cidadão não é obrigado a suportar que o restaurante venda um prato com barata”, pontuou Aldo, continuando.
“O que vem acontecendo, na minha opinião, é que, de maneira equivocada, começaram a aplicar o mero aborrecimento nos casos do prato com a barata. Ou seja, quando houve de forma efetiva a prática um ato ilícito na relação de consumo e obrigatoriamente o consumidor deveria ser indenizado, como determina o artigo 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor”, considerou.
O magistrado acredita que não há uma solução mágica para esse problema, pois o assoberbamento do Poder Judiciário é uma realidade, as cobranças por celeridade aumentam a cada dia.
“A população está carente, precisando ser respeitada, pois não há mais qualquer preocupação com a observância do Código de Defesa de Consumidor que tem hoje, na aplicação totalmente equivocada do “mero aborrecimento”, o seu maior inimigo. O seu maior entrave na efetivação da política institucional de erradicar de nosso País as práticas abusivas, infelizmente”, afirmou Aldo Mello.