Em um auditório lotado pelos principais interessados numa solução para a problemática do petróleo que atingiu a Costa sergipana desde o último dia 23 de setembro, os povos de comunidades tradicionais dos Estados de Sergipe e da Bahia tiveram a chance de pela primeira vez se pronunciar em uma audiência pública voltada para a discussão dos impactos e a busca de respostas para essa tragédia causada pelo derramamento de petróleo.
Durante o evento, realizado na última sexta-feira, 25, no auditório da Caixa de Assistência dos Advogados de Sergipe (CAASE), 22 representantes das comunidades ribeirinhas afetadas pelo óleo falaram e foram atentamente ouvidos pelas autoridades e integrantes de diversas entidades presentes – Ordem dos Advogados do Brasil, em Sergipe (OAB/SE), através de três Comissões Direitos Humanos, Direito Socioambiental, e Direito Urbanístico e Ambiental; o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), a Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema), o Ministério Público Federal (MPF/SE), a Defensoria Pública do Estado de Sergipe, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), a Superintendência do Patrimônio da União em Sergipe (SPU/SE), a Secretaria de Estado da Agricultura, a Defesa Civil Estadual e os deputados estaduais Kitty Lima e Iran Barbosa e a vice-governadora do Estado, Eliane Aquino.
Nas falas o grito era de socorro e o tom era de protesto contra os Governos Federal e Estadual pela falta de tomada de decisão com a finalidade de evitar a ampliação do problema. Houve também a cobrança de um olhar mais atento para as comunidades ribeirinhas e dos povos tradicionais, que sobrevivem da pesca, é de lá que as famílias tiram o sustento.
Eles ressaltaram a necessidade do olhar para o ser humano, para as pessoas. Segundo eles, até aquele momento só se falava e havia uma preocupação com os animais que estavam sendo atingidos.
Cobranças
A extrativista costeira e marinha do Povoado Pontal, em Indiaroba, e coordenadora-geral do Movimento das Catadoras de Mangaba do Estado de Sergipe, Alícia Santana Salvador Moraes, denunciou a situação que as trabalhadoras vivenciam.
“Esse derramamento de petróleo vem reforçar o quanto somos massacradas nessa sociedade brasileira. Somos mulheres, extrativistas, somos pescadoras, vivemos nessas áreas ribeirinhas e quando a gente ouve o Governo falar que vai antecipar um Seguro-Defeso para amenizar essa situação em que a gente se encontra isso só nos deixa mais tristes e revoltados porque nós sabemos que desde 2017 há pescadores que não têm acesso a esse Seguro-Defeso. E os extrativistas que não recebem o Seguro-Defeso, que é o caso de 90% das catadoras de mangaba, como é que vão ficar? E nós que estamos sendo afetadas diretamente com esse desastre ambiental como vamos sobreviver?”, questionou.
Alícia Santana disse ainda que o Seguro-Defeso é para uma espécie de camarão e os pescadores que não estão inseridos nas Colônias e Associações de Pesca e não têm acesso a esse benefício por pescar tainha, robalo, aratu, siri, caranguejo, entre outras espécies também não são indenizados. “Nós já estamos passando fome, estamos sem poder vender os mariscos”, enfatizou.
Grito de socorro
A marisqueira Geonísia Vieira Dias, do Povoado Muculanduba, em Estância, revelou preocupação com a questão da subsistência e da saúde da comunidade. Segundo ela, o Movimento de Marisqueiras, do qual ela faz parte, juntamente com outros movimentos fez uma carta ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) que possibilitou a realização da audiência pública.
“Estamos todos unidos em um grito só de socorro. Governo descubra, investigue para saber de onde vem esse petróleo que prejudica a saúde da mulher, do homem e do pescador. A gente vai passar fome, vai passar necessidade porque ninguém quer comprar mais um quilo de peixe. Se nós não vendermos nosso marisco, o nosso peixe, do que vamos sobreviver?”, questionou.
Genisson Pio, pescador de Ponta dos Mangues, em Pacatuba, representou mais de 300 pescadores da comunidade onde mora na audiência. Genisson revelou que no início do mês de setembro foram encontradas muitas manchas na praia e no dia 5 de outubro o petróleo entrou no estuário do Rio, que ficou bastante afetado.
“Ponta dos Mangues é uma região de pesca e o povo sobrevive da venda do pescado. Perdemos muito porque quem comprava o pescado está com medo por causa desse petróleo que chegou na praia, no rio e o povo ficou cismado de comprar o nosso pescado´. Ninguém sabe o que vai acontecer com a gente depois disso tudo”, ressaltou.
Providências
Depois de ouvir os representantes das comunidades, as autoridades, integrantes de órgãos e entidades também se pronunciaram, apontando algumas decisões.
A superintendente do Patrimônio da União em Sergipe – SPU/SE, Jovanka Carvalho Praciano Ideburque Leal, destacou que o Governo Federal não está de olhos fechados. Segundo ela, há uma severa investigação por parte do Governo Federal para dar a resposta sobre quem cometeu esse crime. “Quando a gente descobrir os culpados que eles sejam punidos”, disse.
Jovanka Carvalho afirmou ainda que colheu os discursos dos que representam os marisqueiros, os pescadores prejudicados, que terão graves consequências e se comprometeu a levar toda a problemática e a dor de sobrevivência que as comunidades estão vivendo. “Levarei protocoladamente esses debates ao Governo Federal, por via da SPU, entregarei no órgão central e lá eles darão uma providência planejada, sustentável e que realmente chegue a atender aos anseios e necessidades de vocês. Vamos nos unir e dar soluções”, ressaltou.
Recolhimento do petróleo
O diretor-presidente da Adema, Gilvan Dias, disse que desde que as primeiras manchas atingiram o Estado todos os dias são percorridos 193km de Costa. Segundo ele, dentre os fundamentos da decretação de emergência existe a garantia de que fosse preservado aqueles que vivem da pesca, do catado e também os marisqueiros.
O diretor-presidente da Adema disse ainda que não se tem como mensurar o tamanho do desastre ambiental. “Nós já tiramos da água 38 toneladas dessa substância. Já foi recolhido das praias e levado para o local onde o produto está sendo depositado de forma provisória 800 toneladas de petróleo. “É um acontecimento gigantesco. O nosso pessoal está diuturnamente nas praias, nos rios e aonde quer que demande o aparecimento dessas manchas”, ressaltou.
Enxugando gelo
O diretor da Defesa Civil Estadual, Alexandre José Alves Silva, disse que fez a proposta da decretação de situação de emergência ao governador e foi prontamente atendido. “Com a decretação a gente teve a possibilidade de angariar recursos para efetivar e dar continuidade a limpeza das praias”, afirmou.
Segundo ele, o que os povos das comunidades ribeirinhas precisam agora é de uma assistência mais de perto. “Do ponto de vista da Defesa Civil o que podemos fazer emergencialmente é essa limpeza. E enquanto não se descobre a causa a gente ainda está enxugando gelo. A fonte ainda não cessou”, disse.
O secretário de Estado da Agricultura, André Luiz, disse que foi muito triste ouvir os relatos. “Todo mundo acaba se comovendo, mas só vocês que estão no dia a dia sabem o sofrimento que é essa situação do impacto ambiental decorrente desse incidente”, ressaltou.
Ações
Ele destacou que tem plena consciência que a antecipação do Seguro-Defeso não é a solução para o impacto, mas acredita que pode minimizar os atrasos. “Temos que cobrar em conjunto do Governo Federal a respeito do atraso que já se tem e que realmente se possa vir uma antecipação desse Seguro-Defeso. Nós solicitamos uma agenda com o secretário de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Jorge Seif Junior, e colocamos a situação do Seguro-Defeso e levantamos a necessidade de nesse momento ser ampliado para as pessoas que não são contempladas. Ele recepcionou o pedido e ficou de estudar essa possibilidade. E este também vai ser nosso principal ponto de pauta na reunião dos secretários de Agricultura, que acontece nesta quarta-feira, 30 de outubro, em Brasília”, disse.
O representante do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Marcelo Ribeiro, se solidarizou com as comunidades ribeirinhas. Segundo ele, o Brasil tem hoje a maior tecnologia de exploração em alto mar no mundo e um Plano Nacional de Contingência sobre poluição e derramamento de petróleo no mar e infelizmente não se sabe por que esse plano só foi acionado cerca de um mês e quinze dias depois de que foi detectado o vazamento do petróleo no mar. “Acho inexplicável que a Marinha não esteja aqui para dar informações atualizadas”, revelou.
Marcelo Ribeiro afirmou que o CBHSF tem se debruçado diuturnamente nas comunidades mais fragilizadas de quilombolas, pescadores e marisqueiras e tem o compromisso de fazer com que os recursos da cobrança do uso da água bruta na Bacia do São Francisco sejam alocados ara contribuir na melhoria das condições de vida dessas populações.
Responsabilidade
O deputado Iran Barbosa destacou que as falas dos povos das comunidades fizeram um recorte muito qualificado, com conteúdo e denúncias muito sérias. “Quero informar que já convidei as entidades integrantes da Frente Parlamentar Ambientalista da Assembleia Legislativa (Alese) para fazer uma reunião e estabelecermos um diálogo mais profundo sobre essas questões colocadas aqui e darmos desdobramentos no âmbito parlamentar. Anotei e vi uma série de questões com as quais me comprometo com indicações aos órgãos que têm a incumbência de solucionar e requerimentos com pedidos de informações”, afirmou.
A vice-governadora, Eliane Aquino, parabenizou as comunidades ribeirinhas por terem provocado a audiência pública. Segundo Eliane, o Governo vem atuando desde a chegada das manchas na Costa sergipana. “Nós fizemos um plano do que precisa ser realizado em todas as áreas e encaminhamos ao Governo Federal, solicitamos recursos em torno de R$ 22 milhões, e do valor solicitado chegaram R$ 2,5 milhões e 500 kits de EPIs. É importante lembrar que isso é uma responsabilidade 100% do Governo Federal. Nós precisamos cada vez mais lutar porque as consequências são muito fortes”, salientou.
Ação Civil Pública
O defensor público Sérgio Moraes disse que o País está diante de uma das suas maiores tragédias ambientais. “É uma tragédia sem precedentes e inimaginável e parte da sociedade brasileira ainda não se deu conta da gravidade dos problemas”, afirmou.
Sérgio Moraes propôs que diante de um problema tão grave e de dimensão tão incalculável que todas as entidades participantes da audiência se unissem para tutelar os interesses das comunidades afetadas, ao exigir do Governo o mínimo de assistência e suporte para manter imediatamente a dignidade das pessoas. “Poderíamos pensar em políticas assistenciais para as pessoas que estão com fome”, pontuou.
A presidente da Comissão de Direito Urbanístico e Ambiental da OAB/SE, Robéria Silva, disse que a Ordem tem acompanhado todos os atos jurídicos. “Nós recebemos da OAB Nacional o encaminhamento de uma Ação Civil Pública e vamos analisar, uma vez que o MPF, que tem uma atuação expressiva no Estado de Sergipe com as questões ambientais já ajuizou uma ação, e se os pedidos forem coincidentes não há razão neste cenário para uma ação igual”, revelou.
Segundo Robéria, chama atenção à questão de o evento danoso ter ocorrido na Plataforma Continental. “Muito se tem noticiado que o foco principal seria em águas internacionais. A Convenção Internacional de Responsabilidade Civil decorrente de danos por contaminação por óleo prevê uma compensação e essa compensação é em valores, mas existe uma situação que vem antes que é a identificação de quem causou esse dano. Tenho trazido em todas as manifestações a importância de se convocar a Comissão de Controle e Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) porque ela tem competência para atuar nas águas internacionais. O Brasil é signatário de várias Convenções e se até a presenta data nós não temos apontado o culpado então que nós peçamos ajuda de quem talvez tenha uma expertise maior”, ressaltou.
Robéria destacou ainda que o Ibama e a Marinha têm a obrigação de fiscalizar toda a Plataforma Continental.
Plano Nacional de Contingência
O procurador da República do Ministério Público Federal, Ramiro Rockenbach, disse que a legislação brasileira prevê como agir mesmo nesse caso das chamadas manchas órfãs, mesmo sem se saber a identificação. “Não adianta ficar correndo atrás da identificação de quem causou o problema enquanto o problema está aqui gerando danos todos os dias. A nossa primeira ação na justiça só veio depois de nós tentarmos a todo o custo, fora do processo e do sistema Judiciário, convencer a União de que ela não estava fazendo e, não está, absolutamente nada em termos de proteção as nossas áreas sensíveis”, ressaltou.
O procurador afirmou que a União não quer pagar a conta porque ela sabe que talvez jamais se identifique o causador. “O nosso País tem uma legislação preparada para agir em casos como esse, que é o Plano Nacional de Contingência”, destacou.
Ele disse que por enquanto o MPF não teve êxito na ação ajuizada em Sergipe. “Nós estamos preparando um recurso e, além disso, entramos com uma ação em Sergipe assinada pelos representantes do MPF dos nove Estados do Nordeste para acionar e implementar o Plano Nacional de Contingência porque ele ao contrário do que diz a União, não está nem acionado, muito menos em funcionamento nos termos da legislação e da base científica que o fundamenta”, afirmou.
Toxidade
A secretária-geral da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), Roberta Casali, ressaltou o discurso das mulheres na audiência pública. “Estamos mobilizados para incentivar que todos os nove Estados possam encampar a causa de proteção de pescadores e marisqueiros porque quanto mais instituições puderem se unir mais serão fortes. Vocês precisam da assistência do Governo, vocês têm o direito e o dever de exigir que o poder público cumpra a sua função. Nós temos jurisprudência, decisão de Tribunal Superior dizendo que o Estado tem a obrigação de protegê-los”, ressaltou.
Ela alertou ainda para a toxidade do óleo encontrado nas praias. “Estudo feito pelo Departamento de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) apontou que esse material é de risco toxicológico grave, agudo e crônico. Portanto, fiquem atentos e não manuseiem e evitem o contato. Todo o dano que vocês estão sofrendo precisa ser recomposto, indenizado”, comentou.
O membro da Comissão de Direito Socioambiental da OAB/SE, Pedro Otto Souza Santos, que representou o presidente da Comissão, Honey Gama, revelou que a OAB é casa do povo e da sociedade, e para manter acesa a voz do povo a Ordem estará sempre de portas abertas. “Nós não estamos de olhos fechados, estamos aqui para representa-los”, afirmou.
O ex-presidente da OAB/SE, Henri Clay Andrade, disse que o que aconteceu no Nordeste brasileiro foi um crime de graves proporções. “O Governo Federal ao não acionar o Plano Nacional de Contingência está praticando um ato de improbidade administrativa. Sugiro ao MPF, que estude a possibilidade de entrar com uma ação criminal contra o presidente da República, por omissão, por improbidade e por insensibilidade com o povo do Nordeste. Quero propor que a OAB Nacional provoque uma audiência pública, em Brasília, e convide o Governo Federal para tratar desse problema que é nacional, é do Brasil”, salientou.
Voz ao povo
Iara Moura representante da CNDH disse que na Missão realizada em Sergipe e na comunidade de Siribinha, na Bahia, os membros do CNDH conversaram com pessoas de 10 municípios e 26 comunidades. “O CNDH sai daqui com o compromisso de fazer a escuta desses dois dias de missão e dessa audiência pública e fazer com que essas vozes realmente quebrem o silêncio imposto pelos gabinetes fechados e por quem não bota o pé na lama, no mar e por isso não sabe e ignora que existem pessoas que estão sofrendo e estão realmente impactadas por essa tragédia ambiental”, afirmou.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SE, José Robson Barros, disse que todas as falas se repetiram na audiência pública em uma única voz socorrer as comunidades. “Não podemos ficar apenas com o discurso, a vontade tem que sair do discurso e ir para a prática. Eu ouvi “in loco” nas comunidades de vocês o quanto vocês estão esquecidos. A Comissão de Direitos Humanos vem se fazendo presente em todas as afrontas a dignidade humana no Estado de Sergipe e nunca recuou e nem deixou de acolher as demandas que chegam. Vendo a força das mulheres marisqueiras e pescadoras coloco a Comissão para qualquer demanda que vocês precisem. Nós vamos instaurar um processo administrativo na Comissão de Direitos Humanos para o monitoramento dos povos e comunidades tradicionais do Estado para acompanhar todas as problemáticas enfrentadas e fazer valer todos os direitos de vocês na prática. A fome não espera, a demanda de vocês é grande, é valiosa e tem amparo legal”, ressaltou.
A quilombola do Brejão dos Negros, Maria Izaltina Silva, disse que os povos e comunidades tradicionais são acostumados a resistir. Segundo ela, o petróleo chegou como uma forma de destruição muito grande nas vidas dos povos ribeirinhos e das comunidades. “A gente já vive oprimido. São muitos anos de sofrimento, nós sentimos na pele a negação dos nossos direitos no dia a dia. Nós, das comunidades ribeirinhas, estamos pedindo socorro ao Governo do Estado e ao Governo Federal”, disse.
De acordo com Izaltina, as comunidades já vêm sendo impactados com outros problemas e agora estão vendo as praias e mangues cheios de petróleo e não sabem o que fazer. “Queremos uma política de reparação específica para o nosso povo. A gente precisa desse olhar de vocês”, enfatizou.
O conselheiro do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Everaldo Patriota, disse que a participação popular incomoda porque as pessoas das comunidades são sujeitos das suas histórias e não podem ser tratados como objeto. “O CNDH ao ouvir os reclames de vocês, ao fazer a inspeção e essa audiência, e ao pisar na lama de óleo do manguezal. Esse é maravilhoso povo nordestino, que vai se unir e reerguer. Nós vamos vencer esse óleo. Tenhamos esperança porque somos maior do que o petróleo e do que a omissão do Governo que não é nada republicano”, disse.