Nesta quarta-feira, 07, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) completa 13 anos de existência. A legislação foi sancionada visando fomentar a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Nesses 13 anos, a Lei Maria da Penha tem registrado muitos avanços. Entre eles, o de dar maior visibilidade à violência doméstica e representar substancial avanço normativo no enfrentamento à violência contra a mulher.
De acordo com a conselheira Federal da OAB, membro da Comissão Nacional da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil em Sergipe (CDDM/OAB-SE), Adélia Moreira Pessoa, nenhuma norma isolada é suficiente para coibir a violência de gênero, que assume caráter de pandemia.
“A Lei Maria da Penha estabelece uma rede de proteção à mulher calcada em políticas públicas específicas e consistentes, em uma perspectiva, tanto preventiva, quanto de assistência à mulher e sua família, mas também de responsabilização do autor da violência de gênero”, ressalta.
Segundo Adélia Pessoa, a legislação depois de estabelecer disposições preliminares acerca dos direitos humanos das mulheres, inaugura o Título II com uma precisa definição do que seja a violência doméstica e familiar contra a mulher, fixando, portanto, sua abrangência temática; a saber: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, seguindo com definições técnicas do que seja violência doméstica, além das formas de manifestação dessas violências (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral).
Medidas integradas
Conforme a presidente da CDDM, no Título III, a lei sinaliza as medidas integradas de prevenção e da própria assistência, quando a violência já não tenha podido ser evitada. Ressalta a possibilidade de a vítima, iminente ou efetiva, ser assistida com medidas protetivas de urgência deferidas pela autoridade judiciária e da obrigatoriedade de a autoridade policial encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde (onde receberá atendimento de urgência) e ao Instituto Médico Legal, onde se dará a colheita da prova material (art. 10, parágrafo único e art. 11, II).
“A lei ressalta a necessidade de efetivação do escopo protetivo da norma e do direito de a vítima ter a indispensável assistência jurídica, tanto na fase policial, como na fase judicial. Assim, se não houver defensor público para prestar assistência jurídica à vítima, é indispensável a nomeação, pelo juízo, de Defensor Dativo”, enfatiza Adélia Pessoa.
Outra determinação da legislação é a criação de equipes de atendimento multidisciplinar (arts. 29 a 32) e a criação de centros de atendimento integral e multidisciplinar, além de casas-abrigo, para mulheres e seus dependentes, delegacias, defensorias públicas, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados, programas e campanhas de enfrentamento e centros de educação e de reabilitação para os agressores (art. 35). Preconiza ainda a elaboração de estatística sobre a violência doméstica e familiar (art. 38).
Violência
Adélia Pessoa explica que a violência baseada no gênero é qualquer conduta, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. “É o que se definiu em 1994, na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção Belém do Pará – ratificada pelo Brasil, e, portanto, parte do Direito Brasileiro. Entretanto, é no âmbito familiar/doméstico que a violência de gênero apresenta-se com extrema relevância, desafiando a todos no sentido de encontrar alternativas para o seu enfrentamento. E foi este o objeto da Lei Maria da Penha”, afirma.
Ela revela ainda que a violência doméstica e familiar contra a mulher não pode ser vista como um ato isolado – mas como fenômeno histórico-social que emerge de uma complexa combinação de fatores, fazendo-se presente em todas as classes sociais.
Conforme Adélia, estudos demonstram que, preponderantemente, ocorre no contexto de relações domésticas, mas não se restringem ao lar, tendo, todavia, nele sua gênese, podendo revelar-se através de várias molduras, expressando-se por diversas formas que não se excluem mutuamente (física, moral, psicológica, patrimonial e sexual).
Estatísticas
As estatísticas demonstram que a violência contra a mulher – diferentemente da que acomete o sexo masculino – ocorre preponderantemente no âmbito familiar e doméstico.
A Lei Maria da Penha incrementou políticas públicas voltadas para o enfrentamento à violência contra a mulher, deu mais visibilidade ao fato e um olhar mais ampliado para o problema, não mais circunscrito aos grupos feministas.
Segundo a presidente de CDDM, com a Maria da Penha, a mulher adquiriu maior força de levar a violência doméstica a que era submetida ao conhecimento das autoridades e conseguiu ver os resultados. Adélia Pessoa ressalta que é possível constatar um maior número de inquéritos instaurados, nos 13 anos da vigência da lei.
“Dados obtidos na Delegacia de Atendimento à Mulher de Aracaju (DEAM), que atende mulheres de 18 a 59 anos, demonstram que no ano 2006, ano em que foi editada a Lei Maria da Penha, foram registrados 1.923 Boletins de Ocorrência (BOs), mas instaurados apenas 71 Inquéritos Policiais (IPs); no ano de 2007 – registrados 2.006 BOs e 248 IPs, com crescimento contínuo, verificando-se que, em 2019 – até final do junho – em apenas um semestre, foram registrados na DEAM, 1.829 Boletins de Ocorrência e instaurados 729 Inquéritos Policiais”, relata.
O que se depreende desses números é que os Boletins de Ocorrências policiais não cresceram na mesma proporção dos inquéritos policiais. “É preciso lembrar que, sob a vigência da Lei 9099/95, a violência doméstica existia e fora banalizada, e, na maior parte, não eram inquéritos os procedimentos elaborados na delegacia, mas Termos de Ocorrências e, após, encaminhados aos Juizados Especiais Criminais, suscetíveis de transação pecuniária. Além disso, ocorria grande número de desistência das vítimas, na própria delegacia, face ao caráter de crime de menor potencial ofensivo atribuído à lesão corporal leve, sujeita à ação penal condicionada à representação, conforme dispusera o artigo 88 da Lei 9.099/95. Assim, o aumento de inquéritos policiais, na seara da violência doméstica, não significa, por esse fato, aumento da violência doméstica, mas sim sua maior visibilidade”, pontua.
Adélia Pessoa destaca ainda a previsão na Lei Maria da Penha de políticas preventivas com ações que desconstruam mitos e estereótipos de gênero e que modifiquem os padrões sexistas, perpetuadores das desigualdades e da violência contra as mulheres. “Prevê a lei ações educativas e culturais que disseminem atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito à diversidade de gênero e de valorização da paz, com campanhas educativas, programas educacionais e inclusão nos currículos escolares em todos os níveis, de conteúdos sobre equidade de gênero e a capacitação dos profissionais”, ressalta.
Neste sentido, a presidente da CDDM lembra a criação da Lei Municipal 5.195 de 16 de maio de 2019, de Aracaju, que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino de noções básicas da Lei Maria da Penha nas escolas do município, de maneira transversal, no âmbito de todo o currículo escolar, com a finalidade de impulsionar a reflexão crítica e promover a equidade de gênero, prevenindo a violência contra a mulher. Adélia Pessoa considera este um avanço inquestionável proveniente da existência da Lei Maria da Penha.
Maior atenção
A Constituição de 1988, no artigo 226 § 8º, estabelece que o Estado deve criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares. E a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, foi sancionada nesta perspectiva.
De acordo com Adélia Pessoa, desde a criação da Lei Maria da Penha assiste-se gradativamente a uma maior atenção à questão, nos três Poderes, no Ministério Público, na OAB e na sociedade civil de maneira geral.
“Foram criadas as várias Coordenadorias (ou Secretarias) da Mulher, no âmbito municipal, estadual e federal da Administração Pública, multiplicando-se os serviços de atendimento à mulher e à família, inclusive com a criação de mais delegacias especializadas. No Poder Judiciário, foram instaladas as Coordenadorias da Mulher, em cada Tribunal de Justiça e Varas especializadas para julgar os casos de violência contra a mulher; o CNJ também aguçou o seu olhar sobre o fato, estabelecendo diretrizes para os tribunais para acelerar o julgamento de ações relativas à violência doméstica e participando deste movimento em prol de uma vida sem violência nas famílias”, afirma.
Além disso, o Congresso Nacional criou a Procuradoria da Mulher e a Comissão Parlamentar Mista da Mulher; vários legislativos estaduais e municipais criaram as Frentes Parlamentares em Defesa da Mulher, a exemplo da Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe e da Câmara Municipal de Aracaju. O Ministério Público criou Núcleos Especializados e Centros de Apoio Operacional de Defesa da Mulher, definindo atribuições de diversas Promotorias na Defesa dos Direitos da Mulher. A OAB e a Defensoria Pública criam núcleos ou Comissões de Defesa da Mulher.
“Com isso, a mulher adquire maior força de levar a violência doméstica a que era submetida ao conhecimento das autoridades e consegue ver os resultados”, comenta.
Desafios à efetivação da Lei
De acordo com a presidente da CDDM, Adélia Pessoa, as mudanças de posturas quanto aos direitos humanos das mulheres não são consequência automática da sociedade democrática, sendo indispensável um esforço conjunto da família, da sociedade e do poder público – trabalho em rede efetivamente. “Sem dúvida, a violência contra a mulher não é apenas um acontecimento da vida privada, pois em briga de marido e mulher, o Estado precisa meter a colher!”, diz.
Segundo Adélia Pessoa, como principais desafios que obstam a plena efetivação do enfrentamento à violência de gênero encontram-se, entre outras: a dificuldade e instabilidade das vítimas para denunciar e manter a denúncia (medo e vergonha ainda estão presentes); a incompreensão e a resistência de alguns agentes públicos responsáveis pelos atendimentos e encaminhamentos; a precariedade das redes de enfrentamento e atendimento; e a falta de apoio efetivo para as vítimas, no âmbito privado e público e de programas de atendimento ao agressor, em vários lugares deste Brasil-continente, e com isso, os elevados índices de reincidência.
“Quando a violência é sexual, caso do estupro, por exemplo, acrescente-se ainda a resistência à comunicação do fato às autoridades; a falta de atendimento imediato e, ainda, o desconhecimento do direito à interrupção legal da gravidez, entre outros”, destaca.
Ações de prevenção
Adélia revela ainda que se faz indispensável o desenvolvimento de ações de prevenção e de fortalecimento das redes de atendimento e de enfrentamento à violência doméstica; urge a realização de capacitação continuada e sensibilização de profissionais da rede.
“Ainda persistem compreensões limitadas na conceituação “das violências”: que tipos de comportamentos cada um dos parceiros nomeia como “violência”? O que os “outros” entendem como “violência”? Qual o seu limite em uma relação familiar? É urgente desconstruir mitos e estereótipos que ainda permeiam a nossa sociedade, inclusive entre os operadores de direito, gerando distorções, silêncios e preconceitos. Vale observar que negligências e omissões de pessoas ou de instituições, muitas vezes, são justificadas com base nesses mitos. Ressalte-se que ainda está muito presente entre nós, a legitimação da violência de gênero que é atribuída ao comportamento provocativo e sedutor da mulher, quando o foco deveria ser o crime”, assevera.
Adélia Pessoa salienta também que apesar de as políticas de proteção à mulher serem definidas por entidades públicas, a sua concretude depende da fiscalização de toda a sociedade civil, dos Conselhos de Direitos da Mulher, da OAB, dos Movimentos Sociais e de entidades não governamentais.
“Assim é preciso, urgentemente, que novas políticas públicas condizentes com as necessidades locais sejam implementadas, e as já existentes fortalecidas e corrigidas em suas deficiências. É necessário repetir sempre que a proteção e as políticas sociais constituem dever do Estado, mas dependem da colaboração de toda a sociedade – que deve participar cobrando das autoridades governamentais sua implementação, acompanhando e fiscalizando seus resultados. E nessa seara, destaque-se o papel essencial da OAB, que, conforme mandamento estatutário, tem por finalidade defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas (art. 44 EOAB) . E a violência contra a mulher é uma violação dos direitos humanos”, ressalta.
História
Maria da Penha, farmacêutica cearense, sofria constantes agressões por parte do marido que, em 1983, tentou matá-la com um tiro, deixando-a paraplégica.
Quando denunciou seu agressor, Maria da Penha percorreu um calvário, situação que muitas mulheres enfrentavam quando denunciavam seus agressores, não obstante a existência, já na década de 80, de movimentos de mulheres que denunciavam a discriminação baseada no gênero, existente nas leis brasileiras e a legitimação do comportamento violento masculino pelo Poder Judiciário que, através de decisões judiciais, inocentavam agressores, em nome da política criminal de harmonia familiar.
Com a redemocratização política, houve maior pressão para formulação de políticas públicas para enfrentar a violência e a discriminação contra a mulher. As primeiras Delegacias da Mulher, a partir de 1985, foram impulsionadoras de debates, políticas e estudos sobre a violência contra as mulheres.
Em 1994, Maria da Penha lança o livro “Sobrevivi…posso contar” narrando as violências sofridas por ela e pelas três filhas. O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino Americano para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) encaminharam seu caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos(CIDH) da OEA, em 1988.
A CIDH/OEA acatou a denúncia do caso de Maria da Penha Maia Fernandes recomendando ao Estado Brasileiro a resolução do caso, sendo o Brasil condenado a pagar uma indenização a Maria da Penha e responsabilizado por negligência e omissão em relação à violência doméstica, com a recomendação de adotar várias medidas, entre as quais “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual”.
Desta maneira, o Brasil teve que se comprometer em reformular suas leis e políticas em relação à violência doméstica.