A Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Sergipe (OAB/SE) vem subscrever o Parecer aprovado e publicado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) no dia 17 de junho de 2024, sobre o PL nº 1904/2024, que busca alterar o Código Penal Brasileiro, para, dentre outras disposições, afastar a excludente de ilicitude prevista no artigo 128, II, nos casos de gravidez resultante de estupro em gestações acima de 22 semanas, equiparando o aborto nesses casos ao crime de homicídio simples.
O ordenamento jurídico brasileiro considera o aborto um crime, mas, após décadas de discussão jurídica e social, reconhece 03 (três) hipóteses de excludentes de ilicitude para o crime de aborto: gravidez decorrente de estupro, gravidez que coloca em risco a vida da gestante ou gravidez de feto anencefálico. Nessas hipóteses, a gestante pode decidir pelo aborto que, diante da lentidão da prestação do serviço de saúde pública, pode ser realizado a qualquer tempo.
A limitação temporal em 22 semanas para a realização da interrupção da gravidez, nas três hipóteses autorizadas pela lei, viola a dignidade das crianças e adolescentes vítimas de estupro intrafamiliar, que não conseguem pedir socorro antes desse prazo, e das mulheres estupradas mais vulnerabilizadas, que precisam do precário Sistema Único de Saúde (SUS).
A proposta legislativa ignora a realidade brasileira de violência contra a mulher e violência sexual contra crianças e adolescentes, pois a prática de aborto em idade gestacional avançada, notadamente no contexto de violência sexual, acontece em razão da absoluta incompetência do Estado em proteger as vítimas de forma eficaz e célere. Vale dizer ainda que o aborto legal é um processo muitas vezes inacessível, além de doloroso, física e mentalmente, pelas inúmeras revitimizações institucionais sofridas no curso de seu deslinde.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que o ano de 2022 registrou o maior número de estupros da história do Brasil, sendo que 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram crianças e adolescentes. Dos 74.930 estupros registrados nas delegacias brasileiras, 56.820 foram estupros de vulnerável, ou seja, de menores de 14 anos de idade, sendo 86,1% vítimas de agressores conhecidos e de estupro intrafamiliar. Os dados são cada vez mais alarmantes e demonstram, em 2022, um crescimento de 8,6% dos casos de estupro de vulneráveis.
Dados do SUS revelam que foram realizados mais de 12 mil partos em meninas de 8 a 14 anos, apenas no ano de 2023 no Brasil, todos frutos de estupro de vulnerável (crime ou ato infracional).
Este é o cenário de violência contra a mulher, crianças e adolescentes que deveria concentrar os esforços do Congresso Nacional para efetivar e ampliar a proteção, como, por exemplo, aumentando a pena do estupro que acarrete gravidez.
O aborto decorrente de estupro, aborto ético ou aborto humanitário, previsto no inciso II do artigo 128 do CP, decorre da lógica de que não se pode obrigar juridicamente que a vítima de um crime contra sua dignidade sexual conviva com o fruto desse crime, gestando, parindo, criando ou entregando para doação, sendo revitimizada indefinidamente.
A obrigatoriedade do prosseguimento da gravidez decorrente de estupro é uma nova violência, um processo de revitimização agora imposto pelo Estado brasileiro, que pode ser comparado com situações de tortura física e psicológica.
A criminalização prevista no Projeto de Lei é gravíssima, uma vez que afeta, notadamente, mulheres e meninas mais vulnerabilizadas, social e economicamente, que demoram a reconhecer a violência sofrida e a terem acesso aos serviços de saúde. E, obviamente, principalmente a elas será vedado o exercício do direito previsto em lei, culminando com a proibição do procedimento, trazendo-lhe consequências graves à sua saúde física e mental e à sua vida.
Por conseguinte, o PL 1904/24 representa um retrocesso à proteção das vítimas de violência sexual, aos direitos de crianças e adolescentes e aos direitos reprodutivos, violando a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e diversas normas internacionais de proteção dos direitos humanos de mulheres e de crianças e adolescentes das quais o Brasil é signatário.
Destaca-se o vício formal de inconstitucionalidade do PL, uma vez que não passou pelas comissões da Câmara, sobretudo a Comissão de Constituição e Justiça, bem como sua inconvencionalidade, pois viola as convenções internacionais das Nações Unidas e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre direitos humanos de crianças e adolescentes e das mulheres.
O PL também padece de inconstitucionalidade material diante da violação da proteção integral de crianças e adolescentes e dos direitos humanos de crianças, adolescentes e mulheres, sobretudo vítimas de estupro, bem como é ilegal, uma vez que viola princípios fundamentais do direito penal, sobretudo a proporcionalidade, isonomia, vedação ao excesso, ressocialização, fraternidade e humanidade da pena, sendo o direito penal a última ratio.
Ademais, esta Seccional Sergipe instituiu, em 14 de junho de 2024, um Grupo de Trabalho técnico para acompanhamento da tramitação do PL 1.904/24, formado por advogadas integrantes do Conselho Estadual, Conselho Federal e Comissões que atuam em defesa dos Direitos da Mulher, da Infância, Adolescência e Juventude e dos Direitos Humanos em Sergipe.
Aracaju/SE, 18 de junho de 2024.
Diretoria da OAB/SE
Comissão de Direitos Humanos da OAB/SE
Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da OAB/SE
Comissão da Infância, Adolescência e Juventude da OAB/SE