Em defesa da palavra da advocacia: um compromisso da OAB com a verdadeira justiça


Por Danniel Alves Costa, presidente da OAB Sergipe

Nos últimos dias, Sergipe assistiu a uma tragédia que não pode passar sem reflexão. Uma médica detida preventivamente sob acusação de ser mandante do assassinato do marido, um advogado criminalista, compareceu a uma audiência de custódia e ali a defesa informou acerca do risco de suicídio, juntando ao processo relatório médico atestando Transtorno de Personalidade Borderline.

Apesar do alerta feito diante de familiares, da médica e de repórteres, no sentido de que a custodiada poderia tirar a própria vida, ela foi conduzida de volta ao Presídio Feminino de Nossa Senhora do Socorro, para que, nas palavras da decisão, recebesse “tratamento adequado”. Horas depois, seu advogado foi informado que sua cliente havia sido encontrada desacordada na cela, com um lençol em torno do pescoço.

Não é nosso papel antecipar juízo sobre a culpabilidade da médica; esse capítulo coube e cabe ao Poder Judiciário. Porém, como Ordem dos Advogados do Brasil, é nosso dever apontar os problemas que a tragédia expõe. A audiência de custódia existe para que juízes avaliem a legalidade da prisão e a necessidade de sua manutenção, ouvindo a pessoa presa e seus advogados. Quando a defesa noticia um risco concreto – neste caso, anunciado pela própria interna – e apresenta documentação médica, espera-se que o alerta seja considerado com o mesmo peso que o parecer ministerial.

O que se observa, contudo, é uma assimetria: em muitos processos, a manifestação do Ministério Público, formalmente apenas opinativa, acaba assumindo contornos vinculantes, enquanto os argumentos defensivos são relativizados. A morte da médica, poucas horas após ter reiterado que poderia se matar caso retornasse ao presídio, torna essa preocupação ainda mais alarmante.

O episódio soma-se a um quadro mais amplo de desequilíbrio no sistema de justiça criminal sergipano. Levantamento do Observatório de Sergipe mostrou que, em agosto de 2018, 62,8 % dos apenados estavam presos provisoriamente, aguardando o primeiro julgamento. Em estudo divulgado posteriormente, a revista Veja apontou que 82 % da população carcerária sergipana não possuía condenação transitada em julgado. Esses índices, somados à lentidão processual e à falta de estrutura nas varas de execução penal, significam que milhares de pessoas aguardam por anos a conclusão de seus processos. A defesa costuma alertar para os danos psicológicos e sociais desse encarceramento prolongado. Mas quantos desses alertas são efetivamente acolhidos?

É nesse contexto que a comunidade jurídica comemora o plano “Pena Justa”, construído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com participação do Ministério da Justiça e de mais de 60 órgãos públicos. O plano, de cumprimento obrigatório por todos os estados, estabelece mais de 300 metas a serem implementadas até 2027, com foco na redução da superlotação, na melhoria das condições prisionais, na reintegração social e na prevenção de violações de direitos.

O primeiro eixo propõe o controle de vagas e o uso de medidas cautelares diversas da prisão. O segundo visa garantir, nos presídios, saneamento, higiene, alimentação e acesso a trabalho e educação para os mais de 600 mil presos do país. O terceiro trata da reinserção das pessoas egressas para quebrar ciclos de violência. O quarto busca que o estado de coisas inconstitucional não se repita, instituindo mecanismos de monitoramento e transparência. O documento estabelece prazo de seis meses para que cada unidade federativa, inclusive Sergipe, elabore seu plano local de implementação, sob supervisão do CNJ.

A OAB/SE tem compromisso em acompanhar e cobrar o cumprimento dessas metas. Não se trata de ser leniente com a criminalidade ou de desconsiderar o sentimento de justiça das vítimas; trata-se de defender a legalidade, a dignidade humana e o devido processo legal, fundamentos sem os quais não há democracia que prospere. É preciso avançar na cultura de substituir a prisão provisória por outras medidas quando a liberdade do investigado não representa ameaça à instrução ou à ordem pública. É preciso fortalecer defensorias, varas criminais e varas de execução penal, de modo que julgamentos ocorram em prazo razoável. É necessário dotar nossos estabelecimentos penais de condições mínimas, inclusive de saúde mental, e garantir que alertas de risco de autolesão feitos por advogados, familiares e principalmente, médicos, sejam levados a sério.

Estamos em pleno Setembro Amarelo, mês dedicado à prevenção do suicídio. A voz da médica que anunciou repetidamente a própria intenção de morrer, deveria ecoar como pedido de socorro. Sua morte dentro do sistema penitenciário não é apenas o desfecho de uma investigação; é o retrato de um modelo que precisa ser revisto. O alerta da OAB é para que juízes, promotores, defensores e servidores redobrem a atenção às manifestações da defesa e aos sinais de vulnerabilidade de quem está sob custódia do Estado. Que se cumpra a lei com equidade, ouvindo todas as partes, e que se zele pela vida de cada pessoa presa, pois, antes de réus, são seres humanos cuja dignidade o Estado também tem a obrigação de garantir.

Não podemos negligenciar a essência da justiça em decorrência de linchamentos virtuais ou narrativas que ignorem o devido processo. O papel da advocacia é servir de ponte entre o cidadão e o Judiciário, evidenciando falhas e propondo caminhos. A tragédia recente lança luz sobre uma chaga histórica de nosso sistema penal: a pouca consideração dada à palavra da defesa. Agora, resta nos unirmos em torno desta reflexão, sem qualquer intenção de se tornar um manifesto acusatório, mas de alerta e de compromisso. Que possamos transformar o luto em movimento e reforçar, na prática, que justiça se faz com equilíbrio, humanidade, respeito e escuta.

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