Por Danniel Alves Costa | Presidente da OAB/SE
Eu tenho um sonho: que um dia as pessoas ocupem espaços profissionais e sociais por competência, dedicação e caráter – jamais por gênero, cor da pele ou por uma deficiência que possuam. Hoje, esse ideal está mais perto.
Conduzimos um ato histórico que reposiciona a OAB Sergipe no mapa das conquistas civilizatórias do país: por unanimidade, aprovamos a primeira cota para pessoas com deficiência em um processo de Quinto Constitucional no Brasil. Não é apenas uma inovação normativa; é um gesto de coragem institucional que rompe um impasse judicial, devolve celeridade ao processo e inaugura um novo patamar de democracia interna e compromisso com a diversidade.
Esta solução permite retomar um processo seletivo que se encontrava travado devido a ações judiciais. Com a aprovação, o certame será retomado imediatamente, por meio da consulta direta a toda a advocacia. A lista sêxtupla a ser formada será a mais inclusiva da história, garantindo a presença de uma pessoa com deficiência, 30% de pertencimento racial e um mínimo de 50% de mulheres. Não é retórica: é regra aprovada, princípio transformado em procedimento.
Ao longo dos últimos meses, enfrentamos tentativas de invalidar as políticas afirmativas. Não recuamos. Trabalhamos tecnicamente, ouvimos a advocacia, buscamos fundamentos e dialogamos com as instâncias competentes. Para tanto, submetemos ao Conselho Federal da OAB a possibilidade de incluir as pessoas com deficiência nos processos do Quinto Constitucional. O parecer positivo chegou nesta segunda-feira, 22 de setembro. Com esse respaldo, e com a aprovação unânime do nosso Conselho, fortalecemos de forma definitiva as políticas de inclusão que defendemos – e que agora praticamos!
A decisão também honra a melhor tradição jurídica: a autonomia da Ordem para regulamentar seus processos, já afirmada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Para resguardar a segurança jurídica e pôr fim à judicialização anterior, revogamos o edital pretérito, o que torna sem objeto as ações que o paralisavam. Escolhemos o caminho mais difícil – o do trabalho, da técnica, da transparência – e recolocamos a advocacia no seu lugar de protagonista.
Não caminhamos sozinhos. Quero registrar o trabalho da conselheira Aline Andrade, relatora do processo e presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Autismo. Ela sintetizou com precisão o sentido do que aprovamos em sua fala durante a sessão: “A grande inovação é a inclusão da vaga para PCD, o que, por lei, abrange também as pessoas autistas. Agora, um advogado ou advogada com deficiência tem uma vaga garantida para concorrer. Além disso, consolidamos a paridade de gênero e mantivemos as cotas para pessoas negras. Tudo isso busca refletir a diversidade da advocacia na lista que vai para o Tribunal.” Aline lembrou, ainda, que não se trata de benevolência, mas de reafirmação de mérito: “Nós presumimos competência, trazemos visibilidade e damos protagonismo. O conhecimento e a qualidade estão preservados, só que agora com uma maior diversidade. Ganha a advocacia e, principalmente, ganha a sociedade.”
O desenho do novo processo é simples, rigoroso e democrático. Uma Comissão Especial conduzirá cada etapa – habilitação, votação, totalização e proclamação – garantindo lisura, isonomia e publicidade. Os requisitos materiais permanecem inegociáveis: reputação ilibada, notório saber jurídico e, no mínimo, dez anos de exercício efetivo da advocacia, com comprovação objetiva da prática profissional. É inclusão com critérios, democracia com responsabilidade.
No coração da resolução está a tríade de ações afirmativas que passa a orientar a composição da lista: mínimo de 50% de candidatas mulheres; 30% de representatividade racial (pretos e pardos), assegurando presença feminina e masculina; e a reserva de 5% para pessoas com deficiência (uma vaga). Em Sergipe, onde os dados do IBGE indicam o maior percentual de pessoas com deficiência do país, essa reserva deixa de ser apenas simbólica e se torna uma resposta concreta à nossa realidade social. Políticas afirmativas, quando bem desenhadas, não rebaixam a régua: elas corrigem distorções de acesso e multiplicam oportunidades para que o mérito real floresça.
Sei que toda mudança encontra resistências. É da natureza humana e também da vida institucional. Mas repito um princípio que tenho levado à frente da OAB/SE: decisões, nós cumprimos ou recorremos; direitos, nós defendemos; e diante de injustiças históricas, nós não nos omitimos! Não estamos “inventando moda”; estamos pavimentando um caminho que será, em breve, a referência nacional. A advocacia sergipana – mulheres e homens, negros e não negros, pessoas com e sem deficiência – olha para este processo e enxerga, pela primeira vez, um espelho menos embaçado.
Quero sublinhar o efeito prático dessa conquista. Quando ampliamos as portas de entrada para talentos diversos, o Poder Judiciário ganha em legitimidade, sensibilidade e qualidade decisória. A advocacia se fortalece como instituição plural e preparada para defender prerrogativas e garantir direitos. E a sociedade – destinatária final da Justiça – colhe decisões mais conectadas com a vida real. Inclusão, aqui, não é um fim em si; é um meio para entregar um sistema de Justiça mais eficiente, humano e representativo.
Os próximos passos estão definidos. Publicamos o novo edital já nesta sexta-feira, 26, com prazo de 20 dias para inscrições. Quem participou do processo anterior poderá reaproveitar a taxa ou, se optar por não seguir, solicitar o reembolso. Transparência e respeito com todos os candidatos: essa é a regra.
A história não se escreve em salto único. Constrói-se como um edifício: tijolo sobre tijolo, laje após laje, com projeto, técnica e mãos firmes. Hoje assentamos uma peça estrutural. Amanhã, virão outras. O que me move – e nos move! – é aquele sonho que anunciei no começo: ver a competência e o caráter abrindo portas que, por muito tempo, estiveram fechadas para muitos. Um sonho que, sonhado coletivamente, começa a se materializar no mundo real. Seguiremos juntos – firmes, serenos e determinados – porque a advocacia sergipana merece, e a sociedade sergipana precisa, de uma Justiça com o rosto do seu povo.